A pandemia em Mossoró

A que custo nos aproximamos dos 200 mortos e do “novo normal”? Relembre alguns casos

Estamos nos aproximando das 200 mortes em Mossoró decorrentes de um mal que já está banalizado. Relembre as medidas adotadas e algumas das vidas cobradas pela Covid desde o primeiro caso no final de março

Por William Robson

“Dr. Clodovil é lembrado nos mais diversos recantos por onde passou. De um jeito sempre alegre, espontâneo, meigo e disponível para servir a todos. Suas risadas altas, alegres e soltas, ficarão sempre ecoando na nossa memória”. A semana passada foi marcada com mais uma vítima de Covid-19 em Mossoró e este texto é parte de uma homenagem que a amiga Clézia Cavalcante publicou em seu Facebook.

Médico Clodovil Cavalcante, vítima da Covid na semana passada

Clézia se referia ao médico psiquiatra Raimundo Clodovil Cavalcante da Silva, 52, que morreu na quinta-feira (6), depois de dias de internação. Mais uma vítima desta pandemia. Colegas prestaram homenagem no posto em que atuava (imagem em destaque). E com ele, estamos nos aproximando das 200 mortes (188 em números exatos até esta terça-feira, 11, segundo a UFRN)  em Mossoró decorrentes de um mal  já banalizado.

Não faz tanto tempo. A primeira vítima da Covid-19 em Mossoró e também no Rio Grande do Norte foi o professor da Uern, Luiz di Souza, que morreu em 28 de março. O que ajudava financeiramente seus alunos mais dedicados, será homenageado pela Uern com o título de “Doutor Honoris Causa“.

O professor da Uern, Luiz di Souza: honoris causa

 Em reportagem da Folha de S. Paulo sobre Luiz di Souza, a colega Kelania Mesquita, do departamento de química, disse que ele inventava uma bolsa que o aluno receberia, mas que, na verdade, era paga por ele, muitas vezes, secretamente. “Era um profissional competente e exigente, ao mesmo tempo que era acolhedor”, disse.

Entre a primeiro e o último caso registrado até agora em Mossoró, passaram-se quatro meses. E neste intervalo, o número de mossoroenses mortos equivale à queda de um Airbus A320, ou seja, uma tragédia que só se torna compreensível quando os números passam a ser humanizados. Desde quando a vida do professor Luiz foi cobrada pela Covid-19, a reação à pandemia em Mossoró passou do temor inicial a ponto de esgotarem-se os estoques de álcool em gel na cidade, à naturalização das autoridades sanitárias que minimizaram o problema.

técnico em enfermagem, Luiz Alves de Brito Sobrinho, de 48 anos

Os casos foram se ampliando, além das estatísticas. Não se deve esquecer de outro integrante da linha de frente do combate ao coronavírus, assim como Clodovil. O  técnico em enfermagem, Luiz Alves de Brito Sobrinho, de 48 anos, morreu em março. Era a terceira vítima no RN. A Covid-19 era mais que uma realidade em Mossoró. O profissional de saúde estava internado em uma Unidade de Terapia Intensiva de um hospital privado e era servidor da Prefeitura de Areia Branca e do Hospital Maternidade Almeida Castro, em Mossoró.

Neto da Panelada, que morreu no início de abril

Em abril, o comerciante e advogado Elias Fernandes Jales Neto, o Neto da Panelada, foi a vítima da vez da Covid-19. “Homem honesto e correto no que fazia”, resume o filho Jerônimo Jales, em entrevista na época. Ele era a vítima de número 11 no RN. O filho explicou que Neto foi internado no dia 23 de março. No dia 29, foi levado à UTI e lá ficou até o dia 7 de abril, quando morreu.

O site Inumeráveis destaca algumas das pessoas que não são apenas números da Covid-19. Quando a vida vira um número, as pessoas passam a banalizar os casos, acreditam que eles nunca existiram, que são fantasia. Passam a agir de forma irresponsável e a reabertura econômica, por sua vez, vai estimulando os ausentes de empatia.

O jornalista Emery Costa

Por isso, esta página na Internet, mais que contar a história das  vítimas, também construiu memorial especial para aqueles que viviam no RN. Lá, está o jornalista Emery Costa, que recebeu homenagem através da também  jornalista Rosalba Moreira. “No jornal também fez a sua história. Guardaremos no peito sua memória. Seu legado para nós é um presente”, dizem alguns versos.

O jornal para o qual colaborou por boa parte de sua vida, O Mossoroense, noticiou o triste fato: “Emery Costa, que era diabético, hipertenso e renal crônico, apresentou os primeiros sintomas de contaminação pelo novo coronavírus no dia 15 de abril. Dois dias depois de hospitalizado no Hospital Wilson Rosado, em Mossoró, foi transferido para Natal e, pelo fato de ser de grupo de risco, transferido de imediato para a UTI, onde foi a óbito na tarde de ontem”, destacou. No mesmo dia, Mossoró também perdia o servidor da Prefeitura de Mossoró, Luís Alvacir Gomes.

O comerciante da Cobal César Oliveira

E, desta forma, os casos foram se sucedendo. No mesmo mês de maio, o comerciante da Cobal, César Oliveira, morreu na manhã de 14 de maio, no Hospital São Luiz. Foi a vítima número 24. Neste estágio, enquanto o presidente Jair Bolsonaro relativizava a quantidade de mortes, a prefeita de Mossoró, Rosalba Ciarlini decide adotar o discurso. Sem remédio eficaz para enfrentar a Covid, rendeu-se à cloroquina, o mesmo medicamento do qual Bolsonaro era o garoto-propaganda. Como sabemos, não surtiu efeito e dois meses depois, o número de mortes na cidade aumentaram sete vezes.

A prefeita decidiu, então, edificar um túnel. O intuito era promover a desinfecção daquelas pessoas que adentrassem na Cobal, medida placebo que evitaria promover o isolamento social inevitável. A Anvisa emitiu nota invalidando a eficácia da geringonça. Em seguida, vieram os decretos que forçavam a reabertura do comércio, divergindo do comitê científico estadual e dos decretos da governadora Fátima Bezerra.

Quase 200 mortes depois, sem vacina, nem remédio, a reabertura da economia foi gradualmente concluída. Não há fiscalização rigorosa no controle dos protocolos pelos estabelecimento e algumas festas já ocorrem madrugada a dentro, com aglomerações e sem cuidados. Nesta terça-feira (11), são 5.458 casos cofrmados e, exatamente, 188 mortos. São pessoas como as citadas acima. Quase um terço dos casos vem de moradores dos bairros Abolições, Aeroporto e Nova Betânia.

E enquanto o Estado apresenta índice de queda nos casos, Mossoró responde pela maior incidência na região Oeste.  Tais índices se expressam na ocupação de leitos. Segundo o Governo, o Oeste  tem o maior nível de ocupação entre todas as regiões: 68%. Por sua vez, as regiões metropolitana de Natal,  50%;  Pau dos Ferros, 45%; Mato Grande, 40%; Agreste, 40% e Seridó 66%.  Pois é, a vida não voltou ao normal. Nem existe ainda o tal “novo normal”,  a não ser que este novo normal signifique fazer pouco caso de tantos conterrâneos vítimas e que são bem mais que números.