Fátima realmente viu a emboscada, mas não caiu
Audiência para conciliar decretos serviu como palco para uma emboscada política. No entanto, a governadora foi enfática e não caiu na armadilha que interessava ao prefeito de Natal, Álvaro Dias
Por William Robson
Não foi uma audiência de conciliação. Foi tentativa de relativizar a pandemia e afrouxar o decreto da governadora Fátima Bezerra. O Tribunal de Justiça do RN serviu como palco para uma emboscada política, como afirmou o jornalista Bruno Barreto. No entanto, Fátima foi enfática e não caiu na armadilha previamente preparada e da qual interessava apenas ao prefeito de Natal, Álvaro Dias. O evento foi transmitido pelo canal do Tribunal de Justiça do RN no Youtube nesta quarta-feira (10).
O desembargador Dilermando Mota insistia em um acordo para que a governadora Fátima Bezerra cedesse na rigidez do decreto assinado na sexta-feira (5) que impôs o toque de recolher em todo o Estado, ampliando das 20h às 6h. Insistia para que Fátima se adaptasse à lógica de Álvaro Dias, de reduzir o horário entre 21h e 6h. Para o desembargador, uma hora a mais ou a menos não faria diferença nestes tempos de pandemia e, em especial, de recrudescimento dos casos no RN.
O jornalista Bruno Barreto disse em seu blog que esta audiência (ou esta emboscada) jamais deveria ter ocorrido. Afinal, e como reforçou o advogado e professor Olavo Hamilton, em entrevista ao Foro de Moscow, a jurisprudência imposta pelo Supremo Tribunal Federal (STF) é a de que em caso de decretos conflitantes com medidas de restrição social prevalece o que for mais duro. Neste caso, o do Governo do Estado se impõe. Mesmo assim, Álvaro Dias transforma a pandemia em cenário para angariar vantagens políticas e eleitorais.
A audiência era conduzida desprezando os números e a fúria da pandemia no RN. O desembargador Dilermando descartava qualquer explanação de dados ou argumentos sobre o atual panorama. Queria apenas uma conciliação, ou melhor, que Fátima aderisse aos caprichos de Álvaro. E, nesta cilada organizada para a governadora, concordo com Bruno: não havia necessidade de a governadora comparecer para adaptar o seu Decreto Estadual n° 30.383/2021, de 26 de fevereiro, com o Decreto Municipal nº 12.179/2021, de 6 de março, emitido pelo prefeito de Natal.
Vale lembrar que a capital tem se notabilizado pelo confronto constante neste sentido, não compactuado com outros municípios. É o caso de Mossoró, em que o prefeito Allyson Bezerra, que não participou da audiência, sugeriu “união de forças que possibilite salvar vidas e preservar empregos”.
Álvaro Dias segue a trilha bolsonarista de negar a gravidade da pandemia. Esta semana, ganhou destaque nacional quando a Folha de S. Paulo noticiou que ele afrouxou medidas restritivas mesmo com 84 pacientes na fila por UTI. A governadora Fátima Bezerra lembrou desta fila durante a audiência, mas ninguém quis dar ouvido para isso. O desembargador chegou a ironizar à governadora: “Será que prefeito também não estaria preocupado com as vidas na pandemia?”
Se revisitarmos o histórico político de Álvaro Dias no enfrentamento da pandemia, as vidas têm sido as menores de suas preocupações. O prefeito tem sacrificado a vida dos natalenses em nome da economia, recomendando medicação ineficaz no tratamento da Covid-19 como pretexto de suspender as atividades do comércio na capital. “Vamos usar ivermectina, pois ivermectina funciona”, disse em coletiva no dia 22 de fevereiro.
Na audiência desta quarta-feira (10), voltou a negar a gravidade da situação. Afirmou que a situação de Natal é melhor hoje do que no mesmo período do ano passado. Natal vive situação tão caótica que já exporta seus doentes para hospitais do interior, como Mossoró. Até esta quarta (10), o Rio Grande do Norte já contabilizava 177.127 casos confirmados e 3.806 óbitos por covid-19. Natal tinha até esta terça (9), 49.291 casos e 1.459 mortes pela doença, segundo levantamento divulgado pela Agência Saiba Mais.
Fátima, por sua vez, tentava convencer o agrupamento de pessoas que participavam da audiência que o importante neste momento era a preservação das vidas. “A transmissibilidade se tornou mais perigosa e destruidora diante do surgimento das novas cepas com avanço da mortalidade e avanço da doença sobre a população mais jovem. Há mais de 80 pessoas na fila esperando por leito de UTI. Nesse contexto, peço compreensão para a necessidade de medidas mais duras”, disse, ignorada e muitas vezes, interrompida pelo desembargador que conduzia o encontro. ” Dilermando em várias falas agiu como poucos deputados estaduais de oposição já agiram em relação a governadora”, afirmou o jornalista Bruno Barreto, em seu blog.
A interrupção em torno dos argumentos sobre o quadro severo da pandemia era constante. A governadora tinha de implorar para concluir suas falas, enquanto o desembargador mostrava descaso com os dados ou com as informações levantadas pelo Comitê Científico. O desembargador Dilermando chegou a considerar a governadora como “resistente” por manter o teor do decreto até o prazo final de sua vigência, na quarta-feira (17). O prefeito Álvaro Dias, por sua vez, afirmou que a governadora foi “intransigente”.
“O Governo está sendo intransigente. É lamentável, esperava numa audiência de conciliação que cada lado flexibilizasse. Isso vai penalizar o trabalhador, temos dados divergentes do governo que mostram que a situação em Natal hoje é melhor do que nesse mesmo período do ano passado”, disse Álvaro Dias, que queria manter os bares e restaurantes abertos “para que as pessoas tivessem mais tempo para fazer suas refeições e voltarem para casa”.
Fátima retrucou: “Não se trata de uma hora a mais ou a menos no toque de recolher, mas de cumprir com o dever de preservar a vida do povo do Rio Grande do Norte. Tenho muito respeito por todos os setores produtivos, que têm sofrido muito, mas é preciso defender em primeiro lugar à vida. O momento é de união e diálogo, deixo aqui meu apelo para que mantenhamos o decreto até o dia 17”.
No final das contas, a armadilha preparada com a pressão de outros segmentos interessados na flexibilização do decreto da governadora, foi inócua. Fátima participou de um encontro que mais se assemelhava a um convescote anti-cientificista, porém não caiu na emboscada, nem cedeu um milímetro do decreto que preserva, antes de tudo, a vida do potiguar.