Sem escola na pandemia

Por que Mossoró está gerando uma legião de crianças sem futuro?

O único fio de esperança é arrancado de 27% das crianças mossoroenses. São meninos e meninas da cidade e da zona rural que não têm acesso ao computador, nem à banda larga

Estamos em meio à pandemia, como sabemos. Atinge a todos, mas não uniformemente. A pandemia é como uma tempestade onde todos estão debaixo dela, porém, há quem possa se proteger melhor. Esta tempestade também expõe as desigualdades entre os mossoroenses e coloca qualquer discurso liberal de meritocracia no nivel dos delírios. E uma destas desigualdades mais cruéis está na educação local.

O único fio de esperança é arrancado de quase um terço das crianças mossoroenses. São meninos e meninas da cidade e da zona rural que não têm acesso ao computador, nem à banda larga. Sim, esta é a realidade ignorada por aqueles que vivem em bolhas de puxa-sacos ou gabinetes refrigerados e supõem que a internet e os dispositivos móveis são instrumentos já naturalizados, acessíveis a todos. A pandemia mostrou que não. Sem a garantia deste direito a todos em Mossoró, a educação em tempos de surto de covid-19, é tragédia anunciada e de difícil reparação mais adiante.

Técnicos do sistema de educação local mapearam o grau desta barbaridade em Mossoró, em que crianças pobres ficam à margem da inclusão digital, perdendo o direito de sonhar. O intuito de suas famílias em garantir a educação dos seus filhos é cerceado, porque eles não têm como acompanhar as aulas no atual sistema remoto. O estudo chegou à Câmara Municipal e foi anunciado pelo vereador Ozaniel Mesquita (DEM), como o Blog do Barreto relatou nesta terça-feira (21).

A preocupação de Ozaniel é atravessada pela cobrança à Prefeitura de Mossoró em remediar este cenário dramático. Mesmo ante números que parecem frios, não há como não se assustar. O levantamento aponta que na zona urbana de Mossoró, onde 5.510 alunos estão matriculados no ensino infantil, 3.174 são atendidos pelo sistema remoto de aulas, enquanto 2.336 alunos estão de fora. Ou seja, se consideramos somente o universo da cidade, o processo de exclusão digital é mais devastador.

O quadro se repete no ensino fundamental, onde estão matriculados 6.667 alunos. sendo que 5.290 conseguem ter aulas e 1.372 não. Este universo representa estudantes  do 1º ao 5º anos iniciais. Nos anos finais (6º ao 9º ano) são 3.691 matriculados com 5.207 atendidos e 424 não atendidos.

O estudo ainda esclarece que não são apenas as crianças prejudicadas. Até aqueles que buscam voltar a estudar, acreditando em novas possibilidades, veem seus sonhos igualmente escorrerem pelas mãos. Estudantes do Ensino de Jovens e Adultos (EJA), que engloba 217 matriculados, 157 conseguem acompanhar as aulas remotas e 42 não.

Na educação especial infantil são 27 matriculados, 20 assistidos e sete não assistidos e, fechando área urbana, educação especial no ensino fundamental com 359 matriculados, 185 assistidos e 170 não assistidos. Total da área urbana 16.467 alunos matriculados somando 4.411 sem assistir aula, uma média de 26,7%.

“Esta é uma situação bastante preocupante. São mais de cinco mil alunos sem acesso às aulas”, explicou o vereador no plenário da Câmara. O parlamentar ainda mostrou que a situação é ainda mais preocupante na zona rural.

A educação infantil tem 830 matriculados nesta área, sendo 530 assistidos e 300 fora do sistema de aulas remotas. No ensino fundamental, nos anos iniciais 1.461 matriculados, sendo 1.101 acompanhado aula e 360 não. Nos anos finais são 1.108 matriculados e 801 assistidos e 307 não assistidos. No ensino fundamental especial 70 matriculados, com 40 acompanhando aula de forma remota e 30 sem assistir. Do total de 3.469 alunos matriculados na zona rural, 997 estão sem o acompanhamento remoto das aulas, um percentual de 28,7%.

Há quem, mesmo com números tão estarrecedores, falem que estas crianças poderão ter oportunidades no futuro, caso partam delas a iniciativa, aquele velho discurso da meritocracia. Seria o equivalente a pedir que estas crianças, sem qualquer apoio tecnológico em meio a esta pandemia, a qual ainda estamos imersos, participem de uma corrida partindo de bicicleta na última posição, enquanto os primeiros colocados estão montados em kawasaki.Discurso hipócrita de quem não tem ciência do quadro que nossas crianças enfrentam em Mossoró.

Para complementar, a Folha de S. Paulo apresentou na edição desta quarta-feira (22) levantamento do Datafolha que impõe ainda maior preocupação, além da já apresentada aqui. A msma pandemia que retira as crianças das aulas, também agrava a crise econômica. E, por isso,  31% dos pais de alunos de escolas públicas temem que os filhos não continuem na escola.A reportagem mostra que, além da necessidade de trabalhar, os responsáveis também apontam a falta de motivação como fator que pode levar ao abandono escolar.

“O primeiro sinal de alerta para a evasão escolar é o aluno faltar às aulas. Isso acende um sinal amarelo para os professores, que procuram meios de conversar com o estudante, entender o problema. Agora, eles não sabem se o aluno não está fazendo as atividades porque perdeu o interesse, porque está trabalhando ou por não ter acesso”, diz Patrícia Guedes, do Itaú Social, para explicar o problema apresentado pela pesquisa.

Portanto, Ozaniel vai precisar avaliar outra questão que se descortina: além dos alunos sem acesso às aulas remotas, como está o desenvolvimento das crianças que estão com tal “privilégio”? O que será das crianças (e também dos professores) que não estão aproveitando bem a tecnologia? Pois é, quando um direito que deveria ser de todos não é alcançado, temos uma população desprivilegiada e vulnerável às intempéries de agora e do porvir.