Chupa, Chopard
Todos os presentes valiosos e impessoais destinados ao presidente da República Federativa do Brasil são propriedades do Estado brasileiro
Por Paulo Afonso Linhares
O que difere o “homo sapiens” dos seus ancestrais primatas certamente é a sua capacidade guiar sua existência por valores que derivam de escolhas valiosas, que se tornam as metáforas das diversas eras das sociedades humanas, aliás, fenômenos captados pela sensível poética de Archibald MacLeish, no seu “Methaphor”, quando afirma que “ um mundo termina quando sua metáfora está morta”. Metáforas nada mais são do que valores aceitos e que compõem um arcabouço ético imprescindível à vida social.
Com efeito, uma questão revisitada com frequência cada vez maior refere-se ao agir dos cidadãos que, ungidos pelo voto popular, ocupam relevantes cargos de gestão ou de controle da máquina público-administrativa.
A estes o “sarafo” ético-político eleva-se o décuplo daquele exigido dos ditos “mortais comuns”: a ética pública, nas sociedades democráticas, impõe aos agentes políticos padrões de comportamento social bem mais rígidos do que os impostos aos cidadãos comuns. Importante notar, por exemplo, que nas monarquias constitucionais europeias essa ética política atingiu níveis inimagináveis, como a proibição das famílias reais opinar sobre temas políticos, como ocorre, sobretudo, no Reino Unido da Inglaterra, Escócia, Gales e Irlanda.
No entanto, mesmo nas repúblicas em que tem vigência o estado democrático de direito, os ocupantes de cargos políticos relevantes devem pautar-se por padrões ético-jurídicos compatíveis à sua condição. Assim, a um presidente da República, governador de Estado, senador da República, deputado federal ou estadual, prefeito municipal ou vereador, não é admissível conduta pública dissoluta, desregrada, mesmo porque, na gradação política de suas investiduras, se constituem modelos para aqueles que os investiram na condição de agentes políticos.
Assim, alguém que exerce o cargo de chefe de Estado e de governo, a poderosa presidência da República brasileira, pode ser agraciado por ricos presentes dados por autoridades estrangeiras em missões diplomáticas? Não, todos os presentes valiosos e impessoais destinados ao presidente da República Federativa do Brasil são propriedades do Estado brasileiro.
Após 2016, o Tribunal de Conta da União passou a fazer um controle dos presentes recebidos por presidentes da República que deveriam ser incorporados ao patrimônio da União Federal ou que, por seus caráteres pessoais e de valores pouco expressivos, poderiam ser mantidos nos acervos presidenciais. Fernando Henrique, Lula, Dilma e Temer foram convidados a devolver alguns desses presentes, mas, nada de valor expressivo.
Um bom exemplo disso é o caso dos 568 presentes recebidos por Lula nos seus dois mandatos (2003-2010). Em 2019, o Tribunal de Contas da União decidiu que 559 deveriam permanecer no acervo pessoal do então ex-presidente e nove deveriam ser devolvidos, pelos quais Lula teve que pagar a ínfima quantia de R$ 11.748,40 em 10 parcela de R$ 1.174,84, porquanto tais os objetos, posto que catalogados, não foram encontrados. A verdade é essa. O resto é “fake”, como aquela lenda urbana bolsonarista da apropriação indevida, por Lula, de um tal “crucifixo de valor inestimável”. Deslavada mentira.
Essa discussão, posto que aceita pacificamente por décadas, eclodiu quando veio à tona que o governo autocrático da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes Unidos haviam presenteado o ex-presidente Jair Bolsonaro e sua esposa com “mimos” de vultosos valores: joias comercializadas pela casa Suíça Chopard muito valiosas: o conjunto destinado à então primeira-dama, Michele Bolsonaro, avaliado em 16 milhões de reais; do conjunto milionário destinado a Jair Bolsonaro, só o relógio de pulso Chopard está avaliado em mais de oitocentos mil reais, ademais de uma caneta de ouro, anel, abotoaduras, um rosário muçulmano, todos igualmente de ouro e cujos valores atingem cifras estratosféricas. A grife suíça Chopard é a mais exclusiva no mundo, na venda de joias para potentados de todas as estirpes.
Ressalte-se que em sua trajetória conturbada de presidente do Brasil, passou a imagem de
que usava um humilde relógio Casio e uma prosaica caneta Bic, além de comer galeto com farofa que derramava nas vestes…
Hipocrisia populista: os ricos presentes dados pelos potentados árabes entram no Brasil por vias escusas, sem qualquer declaração de que eram presentes para o Estado brasileiro, no objetivo ilícito de burlar as regras especiais que cuidam dessa matéria. O grave é que parte das ricas joias passaram pela Alfândega brasileira, porém, o conjunto mais valioso foi detectado e retido – as joias de Michele Bolsonaro – pela Aduana nacional, escondido numa mochila de subalterno militar que servia ao Ministério das Minas e Energia. Coisa de contrabando/descaminho de meia-tigela.
Claro, a essas alturas ninguém sabia que os caros adornos do conjunto masculino, aquelas destinadas ao próprio presidente Bolsonaro por seus parceiros das Arábias, havia passado pela Alfândega e, em seguida, entregues àquele.
As joias mais valiosas – acima dos 16 milhões de reais – destinadas à então primeira-dama,
continuaram retidas pelas Receita Federal, a despeito das oito tentativas feitas para liberá-las, inclusive, pelo próprio presidente da República, Jair Bolsonaro.
Por oportuno, ressalte-se as atitudes altivas dos servidores da Receita Federal que não se
intimidaram diante dos esbirros autoritários e ilícitos de seus chefes, para manter a custódia desses objetos de valorosos apreendidos.
Após a entrada do Tribunal de Contas da União no caso, foi decidido que o ex-presidente
Bolsonaro deveria devolver os vultosos presentes que recebeu, inclusive, duas armas que lhe foram dadas. Devolveu tudo. Ao menos o que se sabe.
O que Bolsonaro e sua esposa fizeram por merecer tão ricos presentes? Certamente, não
foram os belos olhos negros e insinuantes de Michele. Para os sauditas um excelente negócio: algumas (ricas) bugigangas da Chopard pela refinaria de petróleo Lindolfo Alves, da Petrobras, na Bahia, comprada por vinte por cento do seu valor na gestão de Jair Bolsonaro. Michele com seus diamantes eternos e Jair Bolsonaro com relógio, anel, caneta e terço dourados, de milhões de reais.
Aqueles tempos do reloginho de plástico Casio de R$ 150,00, da popular caneta Bic de R$ 8,00 e da farofa derramada barriga abaixo, é passado para um Jair acostumado a novos hábitos de consumo. Chupa, Chopard!