Por Tatiana Dias, do Intercept
Com o tema “Capítulo 4, Versículo 3 – Da rua e do povo, o Hip Hop: um manifesto paulistano”, a escola levou os Racionais MCs ao sambódromo, e empilhou referências de resistência negra e periférica, passando por bailes black, homenagem a Sabotage, Negra Li como madrinha de bateria, participação de Nelson Triunfo e um carro dedicado à São Bento, onde aconteciam as batalhas de rima. Uma ala de crianças representou os skatistas.
Um carro trouxe a estátua do Borba Gato, símbolo dos bandeirantes colonizadores, pichada – e teve a presença de Paulo ‘Galo’ Lima, dos entregadores antifascistas, que foi preso por colocar fogo na estátua em um protesto em 2021. Outra ala, chamada “Sobrevivendo no Inferno”, em referência ao clássico álbum de 1997 dos Racionais, mostrou policiais com chifres.
O ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, também desfilou. Neto de um fundador da Vai-vai, Almeida tem uma longa relação com a escola. Neste ano, estava no carro do Borba Gato. Não demoraram a pipocar as primeiras manchetes: “Silvio Almeida desfila com Borba Gato pichado”. Hoje, veículos de direita já falam em “ode ao crime”.
Logo após o desfile, o sindicato dos delegados de São Paulo emitiu uma nota de repúdio, afirmando que o enredo desrespeitou, afrontou e tratou de forma vil e covarde as forças de segurança, e foi um escárnio aos agentes da lei.
De onde menos se espera é de onde não sai nada mesmo. Mas a narrativa seguiu crescendo. Na quarta-feira de Cinzas, a Folha resolveu publicar sobre uma investigação de 2022 da polícia de São Paulo, que diz que a escola emprestou R$ 300 mil de um suposto chefe do PCC para desfilar naquele ano. (O empréstimo foi registrado, o ex-diretor em questão negou a ligação com a facção).
Deve ter dado audiência. Depois, outra manchete do jornal também associou a escola ao crime organizado: “Vai-Vai pode ficar sem sede após negócio que favoreceu suposto chefe do PCC”. Seja qual for a razão pela qual a Folha resolveu publicar isso justamente no dia em que a escola estava sob ataque por ser supostamente “bandidólatra”, como disse o pré-candidato de direita à prefeitura de SP Kim Kataguiri, funcionou. O prefeito de São Paulo já avisou que estuda uma punição à escola (em um enorme Como Queríamos Demonstrar).
Mas qualquer um que acredite e se apegue nessa narrativa generalista é, além de preconceituoso, profundamente ignorante sobre a própria história do Carnaval.
Na década de 1920, quando surgiram as primeiras escolas no Rio de Janeiro, a cultura afro-brasileira era criminalizada e perseguida; desde então, cresceram e floresceram lidando com as contradições da sociedade carioca. O poder instituído, o turismo, as mídias, o mercado, a contravenção, o crime, o jogo do bicho: essas relações cercavam o Carnaval, mostrou Simas em um artigo publicado semana passada no Intercept.
Foi na década de 1970, lembra o historiador, que se aprofundou a relação entre algumas escolas e contraventores. Hoje, o cenário está mudando, com os controles de territórios ligados à milícia e ao tráfico.
Muda o jogo de poder, mas não o papel das escolas na vanguarda da cultura carioca. “As escolas de samba nunca foram problemas para a cidade e sua gente, mas solução. Por isso tantas instâncias – da contravenção ao mercado, passando pelas esferas legais do poder – tentam cooptá-las”, ele escreveu.
Simas fala do Rio de Janeiro, mas não pude deixar de pensar em seu texto, e em suas palavras, ao acompanhar a reação contra a Vai-vai. A nota de repúdio dos delegados, a reação violenta do status quo à resistência desfilando na avenida, é o tal Brasil que deu certo em ação. É justamente o projeto desse Brasil excludente, que defende o encarceramento em massa e a criminalização da cultura negra e periférica, se materializando.
Com a Vai-vai, em que as críticas aos atores desse sistema de repressão foram mais explícitas, a reação também foi mais violenta. Mas é a mesma reação, desde sempre. Neste ano, em que Yanomamis, “Um defeito de cor”, África, serpentes, onças, e Alcione estiveram na avenida, a resistência foi transformada em espetáculo em grande escala. Organizar a raiva e defender a alegria. O Brasil que deu errado foi didaticamente explicado na Globo.
Simas disse, em um vídeo publicado na quinta-feira, que é a brasilidade que pode tombar esse Brasil que deu certo excludente. “O carnaval é a vitória da brasilidade sobre o Brasil. É a vitória do corpo sobre a morte”, ele falou.
Há quem defenda que o que ele diz é romantização. Afinal, nesse mesmo Carnaval também vimos a Beija-flor receber R$ 8 milhões de dinheiro público para homenagear Maceió – levando à Sapucaí o presidente da Câmara, Arthur Lira, do Progressistas, após pegar um voo da Força Aérea Brasileira. Mas os jogos de poder que envolvem a maior festa do país são precisamente o que Simas aponta: a brasilidade, o Carnaval, as escolas são a salvação, e por isso mesmo não faltam tentativas de cooptação e controle – como sempre houve no Brasil que deu certo.