Escândalo das joias

Bolsonaro na Papuda? Depende dessa portaria do Temer

Desde 1991, quando a primeira lei que rege os acervos presidenciais foi promulgada pelo governo federal, na gestão de Fernando Collor, uma série de decretos foram publicados para aprimorar as regras

Por Paulo Motoryn, do Intercept Brasil

O ex-presidente Jair Bolsonaro foi indiciado, na tarde de quinta-feira, 4, pela Polícia Federal no caso das joias recebidas da Arábia Saudita, um escândalo que veio à tona há mais de um ano, em março de 2023. Desde o início, o ex-capitão e seus aliados têm usado a Portaria 59 de 2018, publicada pela Secretaria-Geral da Presidência, já na transição Michel Temer-Bolsonaro, como principal argumento de defesa.

Em tese, o texto definiria joia como um item de caráter “personalíssimo” e que, portanto, poderia ser subtraído do patrimônio público. Com a divulgação do indiciamento pela PF nesta semana, não foi diferente. Em uma busca simples nas redes sociais, é possível ver aos montes o argumento de que joias são bens “personalíssimos” ou menções com ares de sabedoria à tal portaria. “Aproveite para ler a Portaria 59 de 2018”, disse um bolsonarista na publicação mais recente do termo no X.

Mas a alegação não se sustenta juridicamente, como revelamos em uma reportagem do Intercept Brasil em agosto de 2023. Na matéria, o autor da portaria, o ex-ministro Ronaldo Fonseca, um antigo aliado do ex-capitão, desmentiu essa interpretação. “Bolsonaro jamais poderia ter ficado com as joias”, ele me disse. “Quando colocamos semijoias, joias e bijuterias, não se pensava em coisas de alto valor”.

Não adiantou. Mesmo após Fonseca vir a público desmentindo a defesa de Bolsonaro, a persistência da narrativa enganosa promovida pelo ex-presidente segue à pleno vapor. A persistência do argumento é um reflexo da habilidade do bolsonarismo em manipular narrativas para enganar seus apoiadores — e criar uma realidade paralela em que, mesmo acusado de crimes pela Polícia Federal, Bolsonaro teria razão.

A saga das joias sauditas é mais um exemplo de como Jair Bolsonaro tem imenso sucesso em manipular fatos e leis para se defender. Mesmo após ser desmentido por fontes oficiais e reportagens, seus apoiadores continuam a propagar argumentos falsos sem constrangimento. No final das contas, o indiciamento desta semana é, sim, um passo importante para responsabilizar o ex-presidente, mas também serve como um alerta sobre o poder destrutivo da desinformação.

Portaria nunca esteve acima do TCU

Desde 1991, quando a primeira lei que rege os acervos presidenciais foi promulgada pelo governo federal, na gestão de Fernando Collor, uma série de decretos foram publicados para aprimorar as regras para o tratamento de presentes recebidos por autoridades, justamente para prevenir casos de corrupção.

Não tem sido um exercício fácil. O texto inicial da legislação sobre os acervos permitia que presentes não entregues em eventos oficiais fossem incorporados ao acervo privado dos presidentes. Contudo, em 2016, o Tribunal de Contas da União, o TCU, rejeitou essa interpretação, alegando que isso violaria princípios constitucionais, como a moralidade.

O TCU determinou, então, que todos os presentes, independentemente do contexto, devem ser catalogados pelo Gabinete Adjunto de Documentação Histórica da Presidência, que deve determinar se o item pode ser encaminhado ao acervo privado do presidente ou se deve permanecer como patrimônio da União. Na primeira hipótese, caso a autoridade deseje vender o item, a Comissão de Memória dos Presidentes da República tem preferência de compra – o que não ocorreu no caso de Bolsonaro.

A Corte de Contas decidiu ainda que, mesmo quando categorizados como personalíssimos, itens de alto valor devem ser considerados bens do estado. A portaria assinada por Fonseca foi publicada dois anos depois da decisão do TCU. Mesmo assim, o responsável pela assinatura, Ronaldo Fonseca, admite: “A portaria não está acima juridicamente da decisão do TCU”.