“Carrocracia”: como Mossoró deixou chegar ao caos no trânsito e nas ruas?
Na “carrocracia”, ter carro é sinal de sucesso. E quanto maior o tamanho do veículo, mais bem-sucedido o sujeito é. O enfrentamento a esta ditadura de metal se dará com o desestímulo do uso do automóvel para favorecer caminhos multimodais
Alguns setores ainda não foram contemplados pela reabertura econômica em Mossoró. Os primeiros foram aqueles com menor potencial de aglomeração. Tanto o Governo quanto a Prefeitura de Mossoró têm ciência de que as derradeiras engrenagens econômicas promoverão fluxo escancarado de pessoas, ainda mais quando as escolas e os shoppings forem, efetivamente, liberados.
Porém, antes que a vida neste “novo anormal” se consolide, um dos temas mais relevantes de Mossoró voltaram à pauta: a mobilidade urbana ou a mobilidade pública. Eventos e discussões neste sentido avançaram na internet e na Câmara, na intenção de propor soluções para o gargalo que parece desafiador e, ao mesmo tempo, irresolúvel. E diante da problemática, emerge a questão? Como Mossoró chegou ao ponto de privilegiar carros e não oferecer alternativas firmes de multimodalidade de transporte?
No domingo (26), em mais edição dos seminários temáticos online organizados pelo Partido dos Trabalhadores (PT) e organizado pela deputada estadual Isolda Dantas, a mobilidade pública foi a abordagem principal. Professores, pesquisadores e estudiosos dedicaram a manhã oferecendo sugestões para que as pessoas exerçam o direito de ir e vir sem ficar no congestionamento. Garantir opções viáveis, como a bicicleta, ônibus ou caminhar a pé. Sabemos que, ao longo de anos, as gestões anteriores têm olhado à cidade sob a ótica da “carrocracia”, em que as caixas de metal ambulante são mais importantes do que as pessoas.
Neste âmbito, a cultura do “governo dos carros” se sobressai entre as pessoas e se transforma em cultura internalizada. A preocupação dos buracos nas vias de passagem de veículos é mais importante para os mossoroenses do que os desnivelamento das calçadas. A falta de sincronização dos semáforos tem maior pertinência que o preço da passagem de ônibus. A falta de ciclovias e ciclofaixas não incomoda aqueles que têm dois ou até três corredores disponíveis para seus veículos nas avenidas.
Estas e outras colocações foram levantadas pelos especialistas no seminário no Youtube. Noutro momento, o analista de operações da empresa Cidade do Sol, a única do setor de transporte coletivo que insiste em atuar na cidade, Ramon Nascimento, concedeu entrevista ao Foro de Moscow desta quarta-feira (29). Relatou a crise interminável do setor em Mossoró, agravado na pandemia, o que provocou queda de 90% da demanda de passageiros. Após este período, se a empresa ainda continuar na cidade, provavelmente cortará mais de 40% de suas linhas.
Ramon explicou que faltam incentivos para que as pessoas possam utilizar os ônibus. Verdade. O mossoroense não foi educado ao transporte coletivo no regime totalitário da “carrocracia”. Por razões que perpassam pela má qualidade do serviço, concorrência com os táxi-lotação, motoristas de aplicativos e excesso de carros e motos. Nestas condições, os ônibus não oferecem maiores vantagens.
Lembro que, ainda adolescente, morava no Alto da Conceição e saia com minha mãe para o Centro da cidade nos ônibus verdes da Transal, o que para mim era algo sensacional, porque aquela Mossoró do início dos anos 90 era conhecida como a “cidade das bicicletas” (inclusive cheguei a escrever um material especial para a Gazeta do Oeste sobre isso). Este contexto nos estimulava ou até nos obrigava a utilizar o transporte público. A situação começou a mudar quando as motos invadiram a cidade, retirando o título que ostentava envolvendo as magrelas. As melhores condições de vida dos mossoroenses foram acompanhadas pelo boom do petróleo e por ações políticas dos governos progressistas.
Na “carrocracia”, ter carro é sinal de sucesso. E quanto maior o tamanho do veículo, mais bem-sucedido o sujeito é. Um dos especialistas no seminário do PT explicou que, na lista das prioridades de quem começa a ascender financeiramente, comprar um automóvel encabeça. E, de carro em carro, o caos no trânsito parece ser a lógica irrefutável.
Na Câmara Municipal, o vereador Alex Moacir (PP), tem levantado debates relevantes sobre o tema motivado pela Frente Parlamentar do Trânsito e Mobilidade Urbana, criada em 2018. “A Frente Parlamentar pretende discutir ações e medidas que visem melhorar e encontrar alternativas relacionadas à mobilidade urbana de Mossoró”, explicou o parlamentar. Nesta quinta-feira (30), a frente abordou a ética e a cidadania no trânsito, com representante da Uern.
O enfrentamento da “carrocracia” se dará com o desestímulo do uso de automóvel para favorecer outros caminhos. E olhar também para aquelas pessoas da periferia, marginalizada no “governo dos carros”, sejam privilegiadas enquanto pedestres. Não faz sentido 30 carros enfileirados no semáforo, cada um com uma pessoa, quando todas poderiam estar em um único veículo. Tudo seria favorável, do meio-ambiente à redução de acidentes e rapidez. Os debates apresentados até aqui devem se desdobrar em projetos eficientes para tornar o uso do carro cada vez mais caro e desencorajador.
Não refiro nem ao preço do combustível, mas a elementos que possam reduzir maior circulação de veículos, desde rodízios, tótens para cobrança de estacionamento em áreas públicas, redução de corredores – favorecendo vias exclusivas para ônibus – ciclovias, ciclofaixas, fiscalização de transportes alternativos e controle mais rigoroso do nivelamento das calçadas.
O resultado significaria a libertação da cidade do “governo dos carros” devolvendo Mossoró para os mossoroenses, que poderiam, categorigamente, ocupar as ruas, praças, gerando novas possibilidade de uso e de lazer (pós-pandemia, claro!). Daí, instigaria governantes a execução de projetos mais voltados às pessoas, como wifi nas praças, parquinhos para as crianças, expansão de projetos como o Viva Rio Branco para outros pontos da cidade. Não custa nada sonhar com o fim da ditadura de metal.