Por Leandro Demori
A multidão se aglomerava em Whitehall, Londres, numa manhã gelada de janeiro de 1649. O silêncio funebre foi interrompido apenas pelo som das botas marchando sobre a neve suja. Carlos I, o rei da Inglaterra, caminhava com a calma dos condenados que já aceitaram o fim. Até alguns meses atrás, ninguém imaginava que aquele homem marcharia para a morte. Enquanto a Europa se encarniçava em guerras, o rei da Inglaterra dava festas suntuosas para comemorar o reino único em paz do continente.
Carlos I subiu os degraus do cadafalso, estendeu os olhos para o céu nublado e, num último gesto de dignidade, apoiou o pescoço na tábua da guilhotina. O machado desceu e o sangue real jorrou diante de uma nação atônita. Pouco depois, em um gesto de simbolismo grotesco, os médicos da corte procuraram costurar sua cabeça de volta ao corpo – como se assim conseguissem restaurar a autoridade arrancada pela lâmina.
Essa cena não me saiu da cabeça ao ver Jair Bolsonaro no banco dos réus na tarde também gelada de terça-feira. Por dois motivos. Primeiro: nada mais distante da brutalidade de outrara o tratamento que ele recebeu no STF. Não houve carrasco ou lâmina. Bolsonaro riu, brincou, fez piada e campanha, ladeado por dois caros advogados; saiu de lá e foi para casa, fez uma refeição e dormiu em uma cama quente. Não há, como se viu, ditadura no Brasil. Quisera o passado que as ditaduras tivessem sido todas assim.
Mais latente na minha memória, no entanto, era o segundo motivo: sentado no STF, lá estava um ex-presidente brasileiro tentando colar sua cabeça política ao tronco em frangalhos do bolsonarismo.
Como nos filmes em que o protagonista derrotado sabe seu fim, Bolsonaro ofereceu sua versão dos fatos como quem entrega suas últimas falas. Não sobrou a ele mais que fazer um libelo político, uma tentativa tardia de se reescrever como mártir. Como o coronel Kurtz em Apocalypse Now , murmurando “O horror, o horror” no fim de sua trilha de destruição, Bolsonaro pouco explicou – apenas lamentou, tergiversou e tentou olhar para os céus enquanto sentia a lâmina fria no pescoço. O tom de bravura desapareceu. Os gritos de “canalha” ficaram no passado. Sobram insinuações vagas, esforço de autopreservação e um silêncio constrangedor quando confrontado com as provas documentais e testemunhos em primeiras pessoas que o colocam na cena do crime.
Se a presença de Alexandre de Moraes no centro do inquérito já foi um incômodo para Bolsonaro, o que dizer do momento em que o ex-presidente tentou convidá-lo para ser seu vice em 2026? A proposta, em tom cômico-desesperado, teria sido uma tentativa de ironia não fosse o absurdo: Bolsonaro, acuado, tentando lamber a mão de seu maior antagonista, o “ditador”, o “canalha”. Para uma base ainda mobilizada, mas cada vez mais briga do bolsonarismo, a cena de seu herói ajoelhando no milho foi uma pancada dura. A bajulação, neste estágio, pareceu mais confissão de fraqueza do que uma estratégia brilhante. Com sua nudez política à mostra, Jair passou de imbrochável à inseguro, de imorrível à insepulto, de incomível à indigesto. Virou o oposto do mito que criou. Um fraco sem dignidade.
Desculpas não pedidas, culpas assumidas
Em outro trecho do depoimento, Bolsonaro tentou apagar o incêndio que ele mesmo sofreu ao longo de anos. Disse que “não queria ofender” quando afirmou que ministros do STF receberam “milhões de reais” em propinas; que “exagerou”, que não tinha provas; que “estava nervoso”. A sala ouviu em silêncio enquanto o ex-presidente oferecia desculpas mal ensaiadas, em tom de aluno levado ao gabinete da direção. Não houve enfrentamento ou palavras de ordem. Como personagem coadjuvante em seu próprio roteiro, Bolsonaro tentou se reescrever como mal compreendido.
Não se sabe ao certo o destino do personagem que revirou as entranhas da República. Agora, mais do que nunca, seu tipo foi lançado. O rei Carlos I foi enterrado em silêncio sob um piso inofensivo no Palácio de Windsor. Sua cabeça costurada nunca devolveu a ele o poder que tinha na vida. Hoje, faxineiros distraídos passam por ali com suas máquinas elétricas de limpeza de azulejo e fazem zum zum zum com cerdas de água e sabão. À história, restou o símbolo de quem se embriagava de vinho para celebrar o poder, poucos meses antes de ter o corpo mutilado em sacrifícios pelo fim de uma era da Europa.
Os últimos minutos do rei Carlos são descritos por testemunhas de sua decapitação acontecida em frente ao maior salão de banquetes do reino. Teria dito: “Sou servo de Deus em primeiro lugar!”
Bolsonaro vive dias de rei Carlos, perambula pelos tribunais tentando costurar sua própria cabeça com fios retóricos, elogios constrangedores e meias desculpas esfarrapadas. E se já não é possível restaurar seu trono, ao menos sonha fazer o próximo rei. “Brasil acima de tudo!”, dirá do alto de algum palanque. “Deus acima de todos!”, poderá ensaiar quando as algemas abraçarem seus pulsos. “Deus em primeiro lugar”, disse o rei Carlos antes que alguém pegasse agulha e linha. As frases casam. A ver se os destinos políticos também.