Por que Mossoró cede à pressão dos empresários para colocar a sua vida em risco?
Será só a indiferença de parte da sociedade? Por que as autoridades decidiram pagar para ver, aumentar o espaço do cemitério novo e ficar contando mortos como se não tivessem histórias de vidas e famílias enlutadas envolvidas?
Não faz muito tempo, Mossoró viveu dois momentos sinistros com as mesmas características. Insensíveis à quantidade de pessoas acometidas por Covid-19 nos hospitais de Mossoró, dos mortos que se amontoavam e da contaminação em ascensão, boa parte dos empresários locais decidiu fazer duas carreatas pelas principais ruas da cidade, em uma coleção de carros de luxo, num ato pró-pandemia. Na real, estavam preocupados com suas caixas registradoras e, ao eleger tal reivindicação, descartaram qualquer outra ação que viesse a conter o avanço de algo desconhecido e mortal para muitos mossoroenses.
Qualquer pessoa em sã consciência sabe que nem todo o dinheiro do mundo paga uma vida. Sã consciência é algo que precisa ser ressaltado nestes momentos de ode à ignorância e à brutalidade. Mossoró já está na casa de duas dezenas de mortes. O coronavírus vai cobrar a vida de muitas outras porque a reivindicação dos empresários tem surtido efeito. As duas carreatas que rogaram por uma vida normal, sem temor ao vírus, foi um sucesso. O tirilim das caixas registradoras continuarão, mas você é quem vai para a fila do abate.
Por que a reivindicação foi um sucesso? O Centro está lotado, carros de som anunciando promoções poluem as principais ruas, ao lado de tantas aglomerações que recebem e desfazem imediatamente de panfletos de liquidação. As lojas seguem abertas e nenhum comerciante se sente constrangido em colocar seus funcionários na linha de frente do coronavírus, mesmo ciente que terá de custear todas as indenizações e tratamento se algum “colaborador” for infectado.
Mossoró tem níveis de isolamento abaixo dos 40%, ou seja, a cidade nunca esteve em quarentena. Os doentes e as mortes não incomodam, afinal, “isso não é comigo”, “é só uma gripezinha”, “sou um atleta”. Por falar nisso, até a pelada diária às 6h da manhã no campo de terra ao lado do Nogueirão voltou com força total. É a banalização do mal, como já citou Hannah Arendt e reforçada pelo professor e ex-ministro Renato Janine Ribeiro, que “é uma segura porta de entrada para a destruição do humano em nós”.
Será só a indiferença de parte da sociedade? Por que as autoridades decidiram pagar para ver, aumentar o espaço do cemitério novo e ficar contando mortos como se não tivessem histórias de vidas e famílias enlutadas envolvidas? Será que estas vidas foram interrompidas por força do vil metal? São questões para refletirmos.
As atitudes das autoridades locais respondem por si. O afrouxamento do isolamento (se que é houve algum dia), a falta de fiscalização, que recorresse a todos os aparelhos de coerção possíveis, e o estímulo aos passeios com a instalação de túneis ineficazes, apontam para um nefasto lavar de mãos que transferem para você a incumbência de sobreviver – sem prejudicar o bolso dos empresários – para enfrentar um inimigo invisível.
Há movimentos e discussões de lockdown, o mais severo dos isolamentos, em todo o país. E chegaram também ao Rio Grande do Norte. Quem recorre à Justiça para que estanque o volume de doentes que chegam sem parar nos hospitais são aqueles que estão mais vulneráveis, em contato direto com o vírus: os profissionais de saúde. O sindicato da categoria já apelou para que se olhe para as vidas e não para o dinheiro em Natal. O Portal do Oeste noticia que o mesmo será feito ainda nesta quinta-feira (14) em Mossoró.
O coordenador regional do Sindisaúde, João Morais, tem responsabilidade maior em mãos. Sabe que Mossoró, com sua atitude blasé, é o epicentro da pandemia no Estado. “Proporcionalmente, o número de casos de covid-19 em Mossoró é superior a Natal e vem crescendo assustadoramente”, salientou.
Assustadoramente. Guarde esta palavra. Não vem da boca dos empresários em seus carrões, nem das autoridades locais coniventes. Vem de quem está dentro do problema.