Artigo

O triz de Lula

Aliás, não é outra coisa o que têm feito segmentos importantes da imprensa conservadora brasileira, em especial quando dizem que Lula ganhou para Bolsonaro por pequena margem

Por Paulo Afonso Linhares, advogado e professor

Na política, um comportamento recorrente de perdedores e despeitados de variados gêneros é construir argumentos que, embora não expliquem, tendem a menosprezar os efeitos das derrotas eleitorais, sobretudo, com utilização de falácias matemáticas de redução danos. Aliás, não é outra coisa o que têm feito segmentos importantes da imprensa conservadora brasileira, em especial quando dizem que Lula ganhou para Bolsonaro por pequena margem, mormente quando adotam números relativos, grandezas expressas em percentuais.

A partir desse ferramental, é possível construir uma canhestra alegoria de que “Lula ganhou por pouco” ou que a sociedade brasileira está perigosamente dividida. E esse argumento de que Lula ganhou por pouco tem o condão de retirar a legitimidade de sua vitória. Ora, a democracia nada mais é do que uma regra básica de que prevalece a decisão da maioria. Rigorosamente, o candidato que obtém um mísero voto a mais que seu adversário estria eleito. É a famosa regra da maioria que, nas sociedades contemporâneas, formata a concepção mesma de democracia,

O governo Lula seria ilegítimo porque superou seu adversário em reduzido percentual? Nada.  Com efeito, 2.139.645 foi a maioria que Lula obteve sobre Bolsonaro, nas urnas. Todavia, bolsonaristas e gente de extrema-direita busca minimizar essa verdade numérica. E dizem que Lula venceu por pouco o seu adversário Bolsonaro. Sim, depois de patrocinar os maiores abusos de poder político e econômico em eleições presidenciais, sobretudo, com a liberação de bilhões de reais para caminhoneiros e taxistas, os primeiros uma faixa típica de eleitorado bolsonarista, além das mudanças eleitoreiras no programa Auxílio Brasil, Bolsonaro apenas esboçou, com muito sucesso, uma tática eleitoral de redução de danos: teria perdido por cerca de dez pontos percentuais de maioria – mais de 20 milhões de votos -, não fossem as trampolinagens de seus aliados do Centrão, mormente o senador Ciro Nogueira (PP-PI), então ministro-chefe da Casa Civil da presidência da República e, em especial, o supremo executor do orçamento federal, deputado Arthur Lira (PP-AL), presidente  da Câmara dos Deputados.

Fato é que ganhou corpo nas redações de veículos de comunicação e, em especial, no pantanoso terreno das redes sociais que Lula venceu “por um triz” a eleição presidencial no segundo turno. O mais grave é que essa “narrativa” teve acolhimento até em segmentos da mídia progressista, sendo despiciendo notar que tradicionais veículos de comunicação de cariz conservador utilizaram até à exaustão essa bobagem da “pequena” maioria de Lula sobre Bolsonaro, no segundo turno das eleições presidenciais.

Claro, se os resultados da eleição presidencial de 2022 forem vistos apenas em termos percentuais, a maioria de Lula (que obteve 50,90% dos votos válidos) sobre Bolsonaro (com 49,10% dos votos válidos) parece como pequena margem (com 1,8% de maioria), porém, nas eleições democráticas a regra válida é meramente uma operação aritmética de soma, segundo o princípio do “one man, one vote” (“um homem, um voto”), do Direito Eleitoral norte-americano. Percentual serve para expressar os resultados de pesquisas de opinião em eleições. O resultado de um pleito eleitoral, todavia, se traduz sempre em números naturais que, em linguagem matemática, são números inteiros positivos que se agrupam num conjunto chamado de N, composto de ilimitados elementos. Simples assim.

Ora, a maioria que Lula obteve sobre Bolsonaro supera numericamente o eleitorado que efetivamente votou na maioria dos Estados da Federação e Distrito Federal. Por exemplo, no Rio Grande do Norte, os votos válidos somaram 2.038.166, o que é inferior à maioria obtida por Lula sobre Bolsonaro. Assim, como postulado eleitoral, é válido afirmar que Lula venceu Bolsonaro por mais de um Rio Grande do Norte de dianteira, considerando-se os números finais da eleição presidencial de 2022.

Então, Lula venceu “por um triz”? Que é um “triz”? A acepção da palavra em grego (τριχός [trikhós] = pelo, cabelo) originou “um fio de cabelo” em português, algo que significa pequena diferença, um pouquinho, um átimo. Então, Lula venceu por diminuta maioria. Não. Com os seus 60.345.999 votos obteve um Rio Grande do Norte a mais que os 58.206.354 atribuídos a Jair Bolsonaro. E Lula não venceu “por um fio de cabelo”, “por um triz”, como dizem.

Então, vamos parar com essa bobagem falaciosa das eleições de 2022: a democracia, ao contrário que muitos propalam, não é nada sacrossanto, mas, apenas uma boa regra de aferição do consenso em grupos humanos, aliás, orientada por uma ética do consentimento. Nela, a regra fundamental é que a maioria vence, independentemente se por um ou por milhões de voto. Claro, o candidato que obtém, num pleito majoritário, uma votação bem superior ao seu adversário, assume o cargo com uma legitimação equivalente. Portanto, embora vencer uma eleição com apenas um voto de maioria seja legítimo, certamente provoca sentimento de não aceitação do resultado, derivando pedidos de recontagem de votos e até, em atitude extremada, partir para o uso da violência de um golpe de Estado.

No entanto, nas eleições de 2022, neste Brasilsão de enormes contrastes, 2.139.645 de votos obtidos por Lula a mais do que seu oponente, na eleição presidencial, afiguram-se como legitimadoras do processo eleitoral tão bem conduzido pelo Tribunal Superior Eleitoral. E não foi apenas uma vitória por mísero triz.